sábado, 13 de agosto de 2022

Em carne viva

A caminho do trabalho.
- O mundo é injusto, sempre foi e sempre será. E você não vai mudar isso. Então, cuide da sua vida. Se garanta!
O adulto falava para o jovem com fluidez, sem notas de emoção, sem  constrangimento ou dúvida… Como diria meu pai, “de cutampô”.
Sempre achei graça nesta expressão, desde criança, mesmo que não saiba até hoje a origem e o significado explícito. Basta-me o implícito, aquele que resulta do cruzamento das minhas referências com a situação do momento em que a expressão é dita.
Sem ter certeza da forma correta de sua escrita, “cu tampô”, “cutam pô”, “cu tam pô” ou “cutampô”, adotei a última, de ouvido e por pura intuição.
Mas isso não chega a me incomodar, não será um defeito de grafia que fará mal a algum leitor enfermo ou mais sensível.
Há coisas piores.
Os efeitos do “aberracionismo” que está nos afetando, forçosa e cotidianamente, por exemplo. Efeitos esses que acredito serem, em grande parte, decorrentes do seguimento às cegas do tipo de conselho do adulto ali de cima.
O morticínio da pandemia de COVID, a dureza da fome, a amplitude da miséria e da ignorância, a violência à flor da ideia, o ataque que mina a democracia, a corrupção e a estupidez que grassa à nossa volta. E o descaso mítico que essas coisas evocam.
Basta que cada um se garanta. Assim, estará tudo bem. É esta a lição simples e direta que está forjando uma geração (ou mais) de egoístas e indiferentes, principalmente ao sofrimento do outro, mesmo que este outro habite o mesmo teto, compartilhe o mesmo tempo ou respire o mesmo ar a que todos temos direito.
Não importa o direito de todos, mas, apenas, o que cada um consegue garantir para si.
Percebo então que o adulto e o jovem do início já não estão no meu campo de visão. Passo pela praça Generoso Marques, onde pombos e pessoas sem rumo se encontram, observam as fontes, as floreiras e uns aos outros. Onde outras pessoas, com seus pertences e suas dores, se deitam à espera de um descanso e se levantam ao lado do descaso. Onde o tráfico interrompe o trânsito. Onde a prostituição demarca os confins da ilusão. Onde um ex-prefeito de bronze, gordo, forte e bem trajado, assiste do passado a realidade de sempre, garantido em seu pedestal.
Penso em fazer um protesto, um manifesto, ou apenas um gesto para espantar esta cena da minha frente e da minha mente. Mas me lembro que sou fraco, acomodado, que preciso me garantir e, sendo assim, lembro também que suportar isso tudo em carne viva ainda é melhor do que em carne morta.